Um vírus que deforma asas das abelhas e foi responsável pelo declínio massivo de colônias nos Estados Unidos e países da Europa nas últimas décadas foi detectado no Brasil. É o que mostra um estudo da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), publicado em janeiro na revista científica Journal of General Virology e premiado no Reino Unido.
A pesquisa, realizada em parceria com a Universidade de Salford (Inglaterra), detectou o problema em abelhas sem ferrão, nativas do Brasil, popularmente conhecidas como Jandaíra (Melipona subnitida), que são endêmicas do Nordeste – na Bahia, elas são criadas, sobretudo, nas cidades de Paulo Afonso e Glória, no Norte do estado.
De acordo com o setor de apicultura da Embrapa Meio-Norte, empresa pública federal voltada para pesquisa agropecuária, com sede em Teresina (PI), as abelhas Jandaíra têm maior protagonismo na natureza com a polinização da vegetação de citros, morango, café e hortaliças, dentre outras culturas.
Além de estados do Nordeste, essas abelhas sem ferrão estão presentes também na ilha de Fernando de Noronha (pertencente ao estado de Pernambuco), onde foram introduzidas há 30 anos e sobrevivem de forma isolada desde então.
A fase de campo do estudo, entre maio de 2017 e dezembro de 2018, abrangeu tanto estados nordestinos quanto a própria ilha e mostra que 100% das colônias avaliadas tinham o Vírus das Asas Deformadas (DWV, na sigla em inglês).
Esse vírus teve os primeiros registros na Ásia, nos anos de 1970, e se espalhou pela Europa e América do Norte em 2006-2007, num fenômeno que ficou conhecido como CCD (Colony Collapse Disorder) ou Síndrome do Colapso de Desordem da Colônia.
Surgimento
O declínio das abelhas iniciou-se com a associação do DWV com o ácaro Varroa destructor, um gênero que se alimenta das larvas de abelhas e, de acordo com os especialistas, transformou-se numa pandemia mundial por meio do comércio e transporte de abelhas para a polinização de culturas.
“Esse ácaro é um parasita que possui o vírus. Ele injeta na abelha uma carga viral. Com o tempo aparecem efeitos como quebra de asas, redução do tamanho do corpo e do tempo de vida, normalmente de três meses”, disse a pesquisadora Flaviane Souza.
Doutoranda em Ciências Agrárias pela URFB, Flaviane é bióloga com ênfase em genética e principal autora da pesquisa, desenvolvida para o doutorado que pretende concluir em julho deste ano.
A pesquisadora Flaviane Souza (Foto: Divulgação) |
Flaviane informou que estudos anteriores já apontavam para a presença de vírus em abelhas com ferrão no Brasil, mas não se sabia de que tipo era e, por isso, não havia maiores preocupações.
“Outros estudos já foram conduzidos também na Argentina com abelhas sem ferrão, sem, contudo, detectarem a presença viral para a espécie Jandaíra. Agora podemos dizer que esse vírus é mundial”, disse a bióloga.
Segundo Flaviane, “o nível de infecção no Brasil ainda é pouco em comparação à Europa e Estados Unidos, mas já é algo suficiente para monitorar o impacto desse vírus no Brasil”.
Nos EUA, ela conta, “a perda de abelhas sem ferrão gerou grande impacto no sistema de aluguel de colônias para polinização em culturas como a laranja e cereais, além da perda de diversidade de plantas que dependem da polinização delas”.
Sem alterações
De acordo com a pesquisadora, em geral, as colônias brasileiras sofrem perdas devido à falta de manejo, desmatamento, avanço da agricultura, uso de pesticida, dentre outros. Mas com relação a Jandaíra, ainda não foram notadas alterações significantes.
O objetivo da pesquisa da bióloga foi descobrir se havia a ocorrência do DWV nas abelhas nativas no país, quais as variantes (tipos A, B e C) e sua carga viral. Segundo Flaviane, foram escolhidas abelhas típicas do Nordeste, a fim de contribuir com o fortalecimento das espécies regionais.
Ela usou uma técnica chamada transcriptase reversa com PCR em tempo real para acessar o material genético do vírus que está dentro da abelha e amplia sua quantidade para a realização dos testes.
Como resultados foram encontrados os tipos virais A e C, estando a variante B ausente. Para a área amostral, a variante tipo A foi a dominante, sendo ultrapassada pelo tipo C apenas em alguns lugares.
Para a ilha de Fernando de Noronha, o tipo A foi sempre dominante, prevalecendo superior a 90%. Além de abelhas Jandaíra de estados do Nordeste, a pesquisa recebeu amostras também de abelhas com ferrão de outros estados do Brasil: Roraima, Amazonas, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo e Santa Catarina.
“A dominância do tipo A [em Fernando de Noronha] reflete a mesma situação encontrada nos EUA, embora lá o tipo B pareça estar substituindo lentamente as demais”, afirma Flaviane. “Já o tipo C foi recentemente descoberto, então, pouco se conhece ainda sobre essa variante”.
O professor Stephen J. Martin, da Universidade de Salford, um dos colaboradores da pesquisa e uma das referências mundiais em insetos sociais, como abelhas, cupins e formigas, relata que, até o momento, mais de 60 espécies de insetos e cinco espécies de aranhas e ácaros foram infectadas com o vírus DWV associado à abelha.
“A pesquisa de Flaviane detectou que existem abelhas no Brasil infectadas com a rara cepa C do vírus, que se acredita ser mortal para esta espécie. Então, agora é importante determinar se o DWV está causando impacto na flora e fauna locais, reduzindo o número de polinizadores”, disse.
Em março de 2018, a pesquisa ficou em primeiro lugar na categoria 3 Minutes Thesis Competition, durante a X Conferência da Associação Brasileira de Estudantes de Pós-Graduação e Pesquisadores no Reino Unido (Abep-UK), realizado na Embaixada do Brasil em Londres.
Cautela
Orientador da pesquisa, o pró-reitor de Pesquisa, Pós-Graduação, Criação e Inovação da UFRB, professor Carlos Alfredo Lopes de Carvalho, declarou que a pesquisa “pode ter um desdobramento que não se sabe onde vai parar”.
“No Brasil, temos uma série de problemas que vão para além dos agrotóxicos, e com essa mobilidade podemos estar espalhando mais esse vírus. Contudo, é preciso cautela para não assustar todo mundo, vamos ver melhor o impacto”, comentou.
A notícia sobre a descoberta do vírus já virou motivo de preocupação para a Apacame (Associação Paulista de Apicultores Criadores de Abelhas Melíferas Europeias), entidade que representa mais de 600 grandes apicultores no estado de São Paulo.
“A abelha é o maior agente polinizador que existe no planeta. Praticamente 75% de todos os vegetais existentes no planeta só existe porque tem abelhas para polenizar suas flores, oferecendo condições para sobreviver e alimenta a população”, comentou o Diretor Técnico da Apacame e empresário na área de apicultura Radamés Zovaro.
Com relação às abelhas sem ferrão, ele informou que “o Brasil é país que tem o maior plantel dessas abelhas no planeta”. E que “é de fundamental importância a existência dessas abelhas para preservar as nossas vegetações, por isso, a notícia é muito preocupante”.
Pesquisadora na área de apicultura da Embrapa Meio-Norte, Fábia de Mello Pereira declarou que apesar das abelhas sem ferrão serem nativas do Brasil, “sabemos muito pouco sobre elas, por isso, é difícil determinar o impacto da descoberta desse vírus”.
Segundo pesquisadores da UFRB, ao longo dos anos foram desenvolvidas técnicas para combater o ácaro nas abelhas, mas de eficácia duvidosa, como limpeza natural das abelhas, já que o ácaro é possível de ver a olho nu.
Outras técnicas sugerem o uso de produtos químicos, mas ainda não se sabe os efeitos que esses produtos poderiam causar nas próprias abelhas. Talvez, diz a bióloga Flaviane Souza, “as próprias abelhas estejam se adaptando ao vírus”.
“Há pesquisas sendo feitas na Inglaterra nesse sentido, comparando abelhas que foram contaminadas com o vírus há dez anos com outras que foram contaminadas agora. Provavelmente teremos novidades ainda este ano”, afirmou.
Litro do mel de abelhas sem ferrão custa até R$ 120
A Jandaíra é um tipo de abelha que só existe no Nordeste (por isso é endêmica), onde a sua criação por parte dos índios remonta a antes da chegada dos portugueses, em 1500, segundo relatos de pesquisadores. Elas são responsáveis por 40 a 90% da polinização da mata nativa.
Na Bahia, a criação dessas abelhas sem ferrão ocorre principalmente no norte e no oeste, mas em pequena escala. No caso da Jandaíra, elas são criadas somente nas cidades de Paulo Afonso e Glória, informou o pesquisador em apicultura Rogério Matos, do Instituto Federal Baiano de Catu.
Considerado uma das maiores autoridades em abelhas sem ferrão do Nordeste, Matos é autor do livro “Abelha Jandaíra – no passado, no presente e no futuro” (2017). Ao comentar sobre a pesquisa da UFRB, observou que o Vírus das Asas Deformadas atinge indivíduos mais fragilizados.
“Tanto em locais onde se cria abelhas sem ferrão aqui da Bahia quanto de outros estados do Nordeste, como Sergipe e Alagoas, não temos visto abelhas morrerem por conta de falta de asas. Por isso, acho importante pesquisar mais para ver os impactos que essa pesquisa pode ter ou não”, disse.
Numa área de reserva extrativista em Araióses, nordeste do Maranhão, o apicultor Raimundo Nonato da Silva Aires, 55, que também é dono de uma pousada, cria há 25 anos abelhas Jandaíra, cuja produção de mel serve para complementar sua renda.
Ele tem 30 colmeias, de cada uma tira 2 a 3 litros de mel por ano, bem abaixo da produção de abelhas africanizadas (Apis melífera), que rendem até 36 litros ao ano/colmeia.
A baixa produção se dá pela quantidade de abelhas: enquanto a Jandaíra reúne de 3 a 4 mil indivíduos por colmeia, a africanizada passa dos 80 mil. Com relação ao mel, o da Jandaíra é muito mais ácido e possui maior teor de água (25% contra 18% da africanizada), por isso deve ser consumido logo, senão acaba fermentando.
O apicultor ganha no preço: o litro de mel da africanizada sai por R$ 30, já o produzido pela Jandaíra é comercializado por R$ 120 o litro. “É um mel especial, tem muitas propriedades boas pra saúde”, disse Aires.
“Para fazer remédio pra dor de garganta, mesmo, é muito bom. A maioria das pessoas que compra aqui usa para fazer medicamentos. Mas não tem muita produção na região, aqui só eu e mais uns dez apicultores, com produção igual a minha”, afirmou.
Aires disse que as abelhas dele estão saudáveis: “Geralmente, quando tem morte, é por predador, como calango, e invasão de formigas. Por não terem ferrão, elas são mais fáceis de serem atacadas. Mas pelo que vejo, as asas delas estão boas. Deus queira que continue assim”. CORREIO DA BAHIA