Ao se despedir do verão, época mais propícia para a expansão da febre amarela, o Brasil começa a fazer um balanço de como a doença se manifestou na população nos últimos meses.
Segundo o mais recente boletim do Ministério da Saúde, de julho de 2017 ao início de abril de 2018 foram confirmados 1.127 casos de febre amarela no país, incluindo 331 óbitos. O Sudeste concentra a maioria dos registros (Minas Gerais com 43% dos casos; São Paulo 40%; e Rio 17%). No mesmo período entre 2016 e 2017, foram 712 casos e 228 óbitos.
Desta vez, os governos observaram uma expansão da circulação do vírus da febre amarela para regiões metropolitanas. Essa seria a causa do aumento no número de casos, segundo o ministério. Se no período passado a febre amarela circulou por áreas ocupadas por 11,2 milhões de pessoas, no atual, atingiu 35,9 milhões de pessoas.
Mas, segundo especialistas consultados pela BBC Brasil, a população rural continua sendo a mais vulnerável à doença.
Isso porque a febre amarela vista hoje no país é do tipo silvestre – ou seja, seu vírus é transmitido por mosquitos que vivem em ambientes de mata, dos gêneros Haemagogus e Sabethes. Nas cidades, as infecções que têm sido registradas ocorrem após a exposição a áreas de floresta, como parques.
Desde 1942, o Brasil não tem casos de febre amarela urbana, quando o vetor é o mosquito Aedes aegypti - também transmissor da dengue, chikungunya e zika. Para o Ministério da Saúde, a probabilidade da transmissão urbana da doença no Brasil é "baixíssima".
Assim, o impacto da febre amarela em áreas rurais passa a despertar a atenção de pesquisadores para outro aspecto: o efeito da desigualdade sobre surtos recentes da doença, já que essas regiões apresentam indicadores socioeconômicos mais precários e distantes dos radares das autoridades de saúde do país - recebendo bem menos atenção em prevenção e tratamento do que os grandes centros urbanos.
Não há dados oficiais que detalhem a situação socioeconômica das vítimas da doença, mas fatores como menor renda e dificuldade no acesso à saúde no campo revelam o papel da desigualdade neste cenário. Confira alguns destes fatores.
Buss destaca que a exposição à febre amarela frequentemente está ligada ao trabalho em áreas de mata e com rendimento inferior à média nacional, como o extrativismo.
Outro dado que denuncia o papel da atividade econômica na vitimização pela doença é sua prevalência em homens: segundo o Ministério da Saúde, entre os casos suspeitos registrados desde julho de 2017, 17% foram em mulheres e 83% em homens. Para especialistas, essa diferença vem justamente do contato mais frequente de homens com a mata para fins de trabalho.
De fato, indicadores de renda, além de escolaridade e de expectativa de vida, dividem o Brasil rural do urbano. Foi isso que mostrou um estudo conjunto do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil, do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) e da Fundação João Pinheiro (FJP).
Segundo essa pesquisa, considerando dados para 2010, a renda per capita da população urbana é quase três vezes maior do que a da população rural (R$ 882 e R$ 312, respectivamente); na escolaridade, 60% da população urbana com mais de 18 anos concluiu o ensino fundamental, contra 26,5% da população rural; a esperança de vida ao nascer, na cidade, é de 74,5 anos, enquanto no campo é de 71,5 anos.
Em 2017, um estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV-DAPP), por sua vez, mostrou que o Noroeste mineiro, com alto número de óbitos por febre amarela na época e baixo Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), teve níveis baixos de cobertura vacinal contra a doença e de orçamento para lidar com crises epidemiológicas. Isso mesmo na comparação com cidades mineiras sem diagnóstico da doença.
"Ao cruzar esses dados, a intenção foi considerar a relação entre a desigualdade e o não privilegiamento de ações públicas de saúde. Em Minas Gerais, no ano passado, vimos a priorização da vacinação nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Juiz de Fora e Uberlândia, por exemplo", aponta Danielle Sanches, pesquisadora da FGV-DAPP.
"Também em outros Estados, como no Rio e em São Paulo, vimos a escolha por vacinar mais nas regiões metropolitanas. É importante vacinar nesses locais pela concentração populacional, mas é preciso uma conscientização diante da corrida indiscriminada aos postos. A população alvo da imunização contra a febre amarela são os moradores de áreas rurais".
Para a pesquisadora, uma explicação para tais decisões dos governos está no poder de pressão dos moradores de áreas urbanas - e da imprensa, concentrada nessas áreas.
O estudo da FGV-DAPP mostrou também que os municípios com baixo IDHM no noroeste de Minas não contavam em seu quadro com infectologistas - especialistas médicos cruciais no diagnóstico e tratamento da febre amarela.
O acesso à saúde fora dos grandes centros marca há décadas os debates sobre as deficiências do atendimento médico no Brasil. Para Carolina Batista, diretora médica para América Latina da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês), essas dificuldades não se limitam ao enfrentamento de longas distâncias.
"Pessoas que vivem em zonas rurais têm um acesso muito inferior a serviços especializados e de referência, a ferramentas de diagnósticos, medicamentos específicos, entre outros. Em comparação às áreas metropolitanas, isso é extremamente desigual. Mas, ao mesmo tempo que isso impõe um grande desafio, demonstra a enorme pluralidade que temos no nosso país, o que exige pensar o sistema de saúde de forma inovadora", aponta a médica.
"No caso da febre amarela, populações rurais são afetadas duplamente. Uma primeira carga vem da própria exposição a vetores de uma doença potencialmente grave como a febre amarela; e uma segunda, do acesso limitado à saúde".
Para o sanitarista Paulo Buss, os efeitos da desigualdade na febre amarela se tornam mais evidentes após a contaminação.
"Na prevenção, por meio da vacina, excepcionalmente se mitiga a desigualdade no pegar a febre amarela. Mas, depois que se adquire a febre amarela, a letalidade é dependente dos recursos tecnológicos disponíveis, como materiais para hidratação, equipamentos para lidar com um choque hemorrágico e uma UTI. Uma vez adquirida a enfermidade, a desigualdade se torna muito expressiva", diz Buss.
Condições precárias de acesso à moradia também podem contribuir com a exposição à febre amarela na medida em que a ocupação desordenada da terra acaba avançando sobre as florestas.
"A entrada na franja das florestas, sem um planejamento, acaba expondo a população às áreas de circulação do vírus por meio do mosquito que transmite a febre amarela silvestre. Isso significa uma penetração em ecossistemas aos quais a população humana não está acostumada, em um contexto de mudanças climáticas", diz Buss.
Para os especialistas, é justamente essta tendência de ocupação que explica o avanço das fronteiras de circulação da febre amarela. Há uma década, a febre amarela era considerada endêmica (com incidência constante em determinado agrupamento ou região) apenas na região amazônica, o que fazia dali uma área com recomendação permanente para a vacinação. A partir de 2015, observou-se uma expansão da doença para o Centro-Oeste e, posteriormente, para o Sudeste.
Hoje, o Ministério da Saúde considera mais vulneráveis as populações de áreas recém-afetadas pelo vírus e que vêm recebendo a chamada vacinação de bloqueio. Mas, justamente pelo avanço da doença, a pasta definiu que, até 2019, todo o país terá recomendação para a vacina.
Buss explica que, diferente de outras doenças infecciosas, hoje a febre amarela não tem na falta de acesso ao saneamento um fator importante para sua expansão.
"Doenças como a dengue deixam mais vulneráveis populações sem água encanada ou recolhimento regular de lixo, por exemplo. A falta de saneamento facilita a proliferação do mosquito Aedes aegypti. Mas, como a febre amarela no país hoje é a silvestre, não se estabelece uma relação direta com o saneamento", afirma o sanitarista.
"Doenças negligenciadas" são aquelas que, apesar de prejudicarem milhões de pessoas pelo mundo, possuem investimentos reduzidos em pesquisas, produção de medicamentos e vacinas - pelo pouco interesse que despertam na indústria farmacêutica.
Elas costumam ser endêmicas em populações de baixa renda, sobretudo na África, Ásia e América Latina - são doenças negligenciadas de populações negligenciadas, e que muitas vezes foram erradicadas ou controladas em países desenvolvidos. A própria OMS reconhece que a ocorrência dessas doenças "está ligada a uma associação de várias determinantes sociais e em parte porque essas populações não estão em posição de atrair a atenção de tomadores de decisão para os seus problemas e atrair recursos" (no estudo Doenças tropicais negligenciadas: igualdade e determinantes sociais, de Jens Aagaard-Hansen e Claire Lise Chaignat).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) lista 20 doenças negligenciadas, entre elas dengue, doença de Chagas, esquistossomose, hanseníase, malária, tuberculose e doença do sono.
A febre amarela não está na lista da OMS, mas, segundo Carolina Batista, do DNDi, o conceito é dinâmico e está em constante reavaliação. Para ela, a febre amarela tem todas as características de uma doença negligenciada.
Entre elas, está o fato de ser uma doença tropical e infecciosa. Segundo Batista, apesar de ter uma vacina de comprovada excelência - produzida pela Fiocruz -, esta não passou por inovações recentes. Também não há um protocolo de tratamento específico para a febre amarela.
"O arsenal terapêutico para o tratamento da febre amarela é limitado. A abordagem é pelo controle dos sintomas e limitação de complicações, como as que podem vir a afetar o fígado", aponta a médica. G1