“O feminicídio não é um crime como os outros”, sustenta Sandra Melo, delegada-chefe da Delegacia de Atendimento Especial à Mulher (Deam). Em um roubo ou assalto, a vítima vai prontamente à delegacia, registra a ocorrência e faz tudo o que estiver ao seu alcance para que o responsável seja punido. Nas situações de agressões contra a mulher, há um emaranhando de sentimentos que, muitas vezes, impede que o ciclo de violência termine antes de uma tragédia.
Na maioria dos casos, o criminoso vive com a vítima, é o pai dos filhos dela. Foi o homem por quem ela se apaixonou e com o qual dividiu projetos de futuro. Resultado: as agressões não chegam ao conhecimento da polícia – os casos são subnotificados – ou, quando as medidas protetivas são aplicadas, o descumprimento acontece em uma tentativa de reaproximação do ex-casal. “Quando a mulher quer romper, pretende que seja de forma amigável, em paz, espera poder conviver com o pai de seus filhos de forma civilizada”, relata. “Quando não quer, mantém a expectativa de que ele mude, que o relacionamento continue sem violência”, afirma.
O ciclo da violência
Sandra, que tem prêmios internacionais pelo trabalho de proteção às mulheres, explica que no Brasil a violência contra elas é estruturante, é social. Numa sociedade machista, o homem acredita em padrões antigos: deve ser o provedor e o responsável pelas decisões. A mulher precisa ser submissa, focada em cuidar da casa e dos filhos. A Amélia que o espera com o jantar pronto no final de um dia cansativo.
Mas a mulher atual quase nunca se encaixa nesse padrão. Elas são empreendedoras, provedoras e também encontraram outras aspirações que não as exclusivamente afetivas e familiares. “Isso vai causando um desequilíbrio na relação. O homem não consegue mais exercer o controle que gostaria. O casamento deixa de se encaixar no padrão que foi ensinado a ele. Aí começam os conflitos”, conta a delegada.
O ciclo de violência surge de forma quase imperceptível para a vítima. Disfarçadas de ciúmes, começam as brigas e as liberdades dela são cerceadas. A situação se agrava quando as discussões se tornam mais agressivas até que a primeira violência física é praticada. No momento seguinte, os empurrões evoluem para tapas, que evoluem para chutes e pontapés. O risco de morte, então, já está instalado dentro de casa.
O papel do Estado
De acordo com a delegada, ainda que a agressão seja comunicada às autoridades e uma medida protetiva preventiva seja determinada, é comum que a vítima desista ou abra a guarda, aceite o pedido de conversa e acabe voltando ao relacionamento na esperança de que as coisas tenham mudado.
Durante o ciclo de violência, há uma queda drástica na autoestima de vítima, que passa a acreditar que não encontrará outro parceiro ou que merece as agressões. Esses são motivos pelos quais a mulher desiste do processo ou dá uma nova chance ao algoz. Na delegacia, ela normalmente é informada do grau de risco que corre, mas acaba cedendo. “O comprometedor é esse vai e vem. Em algumas situações, o agressor foi condenado, cumpriu pena e os dois voltaram a conviver. Esse homem não mudou. O problema continua o mesmo”, lamenta Sandra.
As medidas protetivas são importantes pelo papel profilático: todos os envolvidos entendem que estão em conflito e precisam ficar separados, evitar contato, até que se possa sentar para resolver o problema. “É um tempo para esfriar. Mas deixa de funcionar quando um deles rompe com o proposto”, complementa. A delegada defende a criação de uma rede de apoio para que as mulheres se fortaleçam e tenham segurança suficiente para romper com relacionamentos abusivos.
Quando acontece o pior e a notícia da morte de uma mulher chega às delegacias brasilienses, os policiais seguem uma regra detalhada de investigação (protocolo de feminicídio). As provas devem ser robustas o suficiente para instruir o processo pessoal. “O feminicídio é um crime de ódio, de vingança, de um homem que é completamente incapaz de lidar com sua frustração”, conta.
Problema coletivo
É comum que as mulheres vítimas de violência doméstica só percebam que estão em perigo quando já correm risco de vida. A delegada afirma que não só a família mas também conhecidos, amigos e vizinhos que percebem as agressões devem, sim, meter a colher. “Os parentes e pessoas mais próximas precisam ter coragem para denunciar e ajudar a vítima, convencê-la de que a culpa não é dela”, ressalta Sandra.
Mulheres que estiverem passando por esse tipo de situação devem ligar para o número 180, que fornece informações sobre a rede de apoio. O 197, que funciona como disque-denúncia, também é uma opção para familiares, amigos e vizinhos que queiram denunciar algum caso de violência – a polícia vai até o local para apurar a situação.
“Precisamos entender que essa violência não é só daquele casal. É um problema que afeta a nossa sociedade, principalmente os jovens e as crianças. É necessário, cada vez mais, tomar alguma atitude antes que o pior aconteça”, conclui. METRÓPOLES